Poucas coisas na
vida são mais preciosas do que a amizade. Na adolescência, nunca dei muita
importância aos apontamentos e conselhos do meu pai, acumulados em suas
vivências e experiências pessoais. Pessoais e intransferíveis, pensava. O que
se aplica a ele aplica-se a mim? - indagava. Mas sempre preferi coisas práticas
a elocubrações. Gosto de perguntas sem resposta.
É claro que na maioria das
vezes ele tinha razão. Mas a adolescência foi justamente um produto de questionamento
e negação; talvez para a desconstituição psíquica da condição de criança. Aos
16 anos, achava que só meus amigos entendiam o que dizia e pensava.
Lembro que meu pai falava
que amigos para toda vida eram aqueles que freqüentavam minha casa à época. Mas
eu não concordava com ele. Sempre gostei de autonomia. Jornalista gosta de
generalizar. Nunca tive vocação para “filho da pauta”.
Em meados de 1995, ainda não
sabia que tinha Júpiter em Gêmeos, mas já tinha consciência da minha habilidade
em convencer pela palavra. No Dia da Independência, convenci três dos meus
amigos: Flávio Schettini, Marcelo Jorge e Ricardo Meirelles, a acamparmos no
Salto do Corumbá, em Goiás. Fácil. Liguei para cada um deles e disse que os
outros dois já tinham aceitado.
Nossa idéia de acampar lá
era antiga, mas são muitas as contingências que adolescentes sem carro e sem
dinheiro encontram para viajar sem ostensivo patrocínio materno ou paterno.
Acabamos decidindo na quinta que viajaríamos no dia seguinte e passaríamos o
final de semana. O dinheiro era realmente pouco.
Tudo ao máximo e agora! Não
tinha consciência até então que era esse meu lema e o mote da minha existência.
Certas coisas exigem alguma premeditação e algum planejamento. Até concordo,
mas não consigo aplicar isto à vida prática sempre que necessário.
A gente tinha o fundamental:
maconha. Bastante maconha. Basicamente, era tudo que precisávamos. Não lembro
bem como chegamos à Estação Rodoferroviária, em Brasília, mas recordo-me que no
trajeto de ônibus até o Salto do Corumbá contabilizamos tudo que cada um não
tinha trazido para, no final das contas, saber o que tínhamos. Barraca? Não.
Pratos? Também não. Colchonetes? Imagina...
Tínhamos duas panelas,
alguns pacotes de macarrão instantâneo e latas de molho de tomate e de milho
verde em conserva, uma lata de cappuccino, alguns pacotes de biscoito e o mais
importante desses itens: um fogareiro que servia também de isqueiro. Além da
erva e do papel para manufaturar cigarros.
Previdência não era exatamente
um atributo comum entre nós. O único que já tinha ido ao Salto do Corumbá era o
Flávio. Marcelo, que até então não tinha o apelido de Kendera, em alusão às
irmãs e ao “quem dera fosse meu cunhado”, nunca tinha ido lá. Carioca e eu
estávamos em Brasília há menos de dois anos. Flávio se lembrava do preço pago
pela diária alguns Carnavais antes. Obviamente, só confirmamos o preço vigente na
portaria de acesso àquele parque cheio de cachoeiras, quando constatamos que
nossa estada seria ainda mais curta do que imaginávamos, e se restringiria ao
resto da tarde de sexta e ao sábado.
Na verdade, creio que
previdência não fosse atributo comum à maioria dos freqüentadores do lugar. Na
tarde anterior à nossa chegada, no dia sete de setembro, um campista bêbado se
afogara perto do lugar onde decidimos acampar, apesar da proibição explícita na
placa à nossa frente. Independência ou morte! No caso dele, morte.
Acampar em local proibido
não era muito problemático por não termos barraca, o que não configurava um
acampamento de pessoas comuns. Distantes alguns metros do rio não muito largo
nem profundo que corria depois do Salto do Corumbá, cachoeira que dava nome
àquele ambiente biofísico, a noite foi fria e desagradável. O frio era tanto
que fumamos a noite inteira, revezando algum cochilo com muita maconha.
Quando amanheceu, acordamos
da noite mal dormida, preparamos um café da manhã e continuamos a fumar, até
percebermos que outras pessoas já estavam acordadas também. Lembro de crianças
caminhando em direção ao rio enquanto dávamos nossas baforadas, tomando
cappuccino, enrolados em cobertores e com muita grama seca nas roupas e
cabelos.
O maior problema de ordem
prática foi, graças a Jah, remediado com facilidade. Conseguimos alojar nossos
pertences em um guarda-volumes, resguardando-os da ação de qualquer um que
ambicionasse apossar-se deles. O sábado foi uma sucessão típica de
acontecimentos comuns a qualquer acampamento no cerrado do Planalto Central:
trilhas entre gramíneas, arbustos e árvores de tronco retorcido, lado a lado
com a vegetação característica da mata ciliar, diferentemente exuberantes;
alguns saltos n’água e braçadas. Até o final daquela tarde, o acontecimento
mais atípico foi presenciar um casal fazendo sexo numa trilha que dava acesso a
uma das cachoeiras. Não sei quanto aos outros, mas foi a primeira vez que
presenciei tal cena.
Cientes da necessidade de
partirmos, fomos para a estrada esperar o ônibus de volta para Brasília sábado à
tardinha. Nem imaginava onde era Pirenópolis, mas constatei que os ônibus que
saíam de lá passavam por nós lotados, sem parar. Pessimista, o desespero já
tomava conta de mim quando um sujeito se aproximou de nós, a pé. Fiquei
receoso, já que fumávamos sentados na beira da estrada. Ele perguntou se estávamos
indo embora, disse que haveria uma festa à noite e que deveríamos ficar.
Explicamos não ter dinheiro. Foi quando o cara ofereceu quatro convites para
permanecermos lá até o dia seguinte, e falou que teríamos que comprar apenas a
pulseira plástica que tínhamos acabado de entregar na saída do parque.
Aceitamos os convites, claro. Compramos as pulseiras e voltamos para o local
onde era proibido acampar, em que havíamos passado a noite anterior.
A tal festa deve ter sido
mesmo decepcionante. Lembro que as músicas não eram nem um pouco convidativas.
Tanto é que optei por continuar fumando maconha. O responsável pelo som
abaixava e aumentava o volume, “mixando” as músicas. Era triste. Foi suficiente
para o Carioca cunhar dois apelidos para eles: DJ Goianinho e MC Corumbá. O que
rendeu boas risadas por um bom tempo.
No dia seguinte, fomos
abordados por dois homens de mais de 30 anos, que perguntaram se tínhamos
maconha. O receio de que fossem policiais civis se dissipou logo, oferecemos
dividir o resto da nossa erva e fizemos amizade com eles. Também eram de
Brasília, moravam no Cruzeiro e ofereceram carona de volta. Aceitamos, lógico,
e gastamos o dinheiro das passagens com cerveja para nós seis.
No final da tarde, depois de
finda a maconha e as cervejas, acometeu-me a dúvida sobre o compromisso firmado
com eles. Pessimista, como de costume, imaginei que pudessem nos deixar lá, sem
carona nem mais dinheiro para as passagens de ônibus.
Não recordo o nome deles,
mas a viagem de volta foi inesquecível, apertados no banco de trás. Ao chegar a
Cocalzinho, a lua cheia pouco acima da estrada parecia cena de filme
hollywoodiano. De repente, o motorista, deslumbrado ao volante, decide apagar
os faróis do carro.
A vida revela surpresas a incautos
e a previdentes. A amizade também.
1º de abril de 2005 (São Paulo
- São Paulo)