Braço direito do meu rei, fui o cérebro por trás de tantas batalhas e vitórias. Antes, porém, minha habilidade para transformar meninos assustados em animais ávidos por sangue me tornou conhecido em todo o reino. Mais do que saber matar, eu sabia ensinar a matar, incitando e contendo o animal selvagem que existe no espírito de cada homem.
A mim, que nunca
tive pai nem mãe, coube equacionar nas fileiras da caserna as histórias de vida
e as tragédias humanas ali reunidas. Para tanto, dominava meus homens: seu
passado, seu presente, seu futuro. Eu nunca me esquecia.
Observador
pertinaz, aprendera muito cedo, também, a importância de escutar. Ouvindo meus
homens, captava o íntimo, a essência, o instinto, as verdades de cada um.
Depois, valia-me da minha memória extraordinária para armazenar e acessar essa
informação — como um grande compêndio de conhecimento acumulado.
Envaideci-me,
não a ponto de me tornar desprezível ou arrogante, mas de refinar ainda mais
minhas habilidades natas, para evidenciá-las. Meu rei só precisava olhar, para que
eu entendesse sua ordem. Era uma relação que prescindia de palavras.
Mas não era a
consciência da importância da arte da guerra para a expansão e a manutenção das
fronteiras que me tornava mais e mais leal a meu rei. Nossa cumplicidade
parecia ancestral.
Sobretudo, ser
leal a ele consistia, antes de mais nada, em ser leal a mim, filho bastardo que
era. E todos sabem de onde vêm e para onde vão os bastardos...
Por minha vez,
sempre tive consciência de que eu era o furor assassino adormecido sob o olhar
terno do meu rei. Elite do oficialato, era seu estrategista, sua sede de
sangue, seu braço forte. Gostava de acreditar que isso me tornava invencível.
Depois do
primeiro retorno de Saturno, defrontei-me com meu maior inimigo: eu mesmo. Meus
doces sonhos de antes, com cheiro e gosto de sangue, e aquele tilintar
ensurdecedor de aço contra aço, com ossos se partindo sob o fio das espadas, e
homens transmutados em bestas-feras, haviam se transformado em pesadelos em que
minha cabeça era decepada no campo de batalha.
Sim, aquela velha
nuvem, outrora esparsa, de pensamentos obsessivos, embotara meus sonhos mais
uma vez. E minha visão. E comecei a temer uma primeira derrota militar, em vez
de ensejar em meus homens a conquista de mais uma vitória.
Passei a dormir
cada vez menos e a delirar cada vez mais. Quando conseguia pegar no sono,
acordava com a cabeça empapada e os lençóis encharcados de suor.
Maldita nuvem.
Cada vez mais densa. Como saber se estava enlouquecendo? Como saber se o que
assistia diante dos meus olhos estava realmente acontecendo?
O que havia me
tornado?
Comecei a
pressentir uma sublevação nas minhas fileiras, uma movimentação de oficiais
ardilosos que invejavam minha posição. Tinha que voltar ao campo de batalha.
Precisava empunhar a espada novamente para convencer meu rei — e a mim mesmo,
sobretudo — de que eu continuava o mesmo afortunado na guerra; aquele que nunca
sofrera uma derrota sequer.
Mal sabia eu que
meu destino já tinha sido traçado. No olhar do rei não havia mais a mesma
cumplicidade. Ou, pelo menos, eu não conseguia mais enxergá-la.
Percebia agir o
oficial a quem caberia me substituir no comando das tropas, por ter ele sabido
se aproveitar daquele momento, aproximando-se do rei. Eu havia sido preterido
quando fui derrotado pelo meu medo de perder. Sentia-me traído por ambos.
A mim restou o
envenenamento...
Com minha morte,
meu ódio se tornou meu maior legado — filho da deslealdade e da traição das
quais fui vítima.
Brasília, 21 de
maio de 2012