segunda-feira, 15 de outubro de 2007

O mito do Robin Hood à brasileira?


Luciano Huck foi assaltado. Levaram seu Rolex. Quem se importa? - você pode se perguntar, como eu. Mas acredite, virou capa da revista Época e páginas amarelas da revista Veja. Eu não li a matéria nem a entrevista; mas tive que ler o artigo que o apresentador da Globo publicou na Folha de São Paulo e a crônica do rapper e escritor Ferréz, autor de Capão Pecado, sobre essa "negociação da realidade", também publicada na Folha.

Eis a negociação da realidade: arma apontada contra a cara, o playboy da vez entrega o Rolex. Sem hesitar. O mano de capacete, armado, "tá na correria". "Se reagir, vira pó" - como diz o Mano Brown, outro trovador do Capão Redondo. Todo mundo sabe.

Eu tenho uma visão bem pouco ortodoxa dos crimes contra o patrimônio. Diferentemente do tráfico de drogas, que é uma transação econômica que envolve fluxo bilateral de bens e renda entre os atores dessa "negociação da realidade", o traficante e o comprador, e obedece a mecanismos de oferta e demanda, em crimes contra o patrimônio, como furto, roubo e assalto, o fluxo de bens e renda entre o criminoso e a vítima é unilateral. Não há qualquer troca de bens econômicos. Substitui-se a posse de algo pela ausência de posse, dialeticamente.

É a lei da bala, simbólica e contundente. O "você sabe com quem está falando?" do mano que aponta uma "quadrada" ou um "três-oitão" e aproxima dois Brasis: o Brasil que não tem e o Brasil que tem. Mas não da mesma forma como também aproxima o Brasil dos "otários", como eu, mão-de-obra barata, e o Brasil dos patrões, abastados.

Eu sei que não passo de um "otário" que enriquece o patrão, empresário. Em relação a ele, meus campos de possibilidades são cerceados pelo mercado de trabalho na contemporaneidade. Se eu não quiser mais, tem uma fila de candidatos ao meu emprego. Como preciso do meu emprego, sigo "otário".

Afinal, quem não tem, quer ter. Quem tem, é vítima em potencial de quem não tem, mas quer ter a qualquer preço. É assim com "correria". Como um Robin Hood às avessas que toma de quem tem para si. O "correria" é um Robin Hood aventureiro, híbrido do homem cordial (de Sérgio Buarque de Hollanda) e do caos urbano à brasileira. Sem arco e flexa nem estudo, mas "com ferro na cinta", esse Robin Hood à brasileira é o anti-herói nacional contemporâneo.

Aposto que o "correria" que roubou o Rolex do Luciano Huck roubou apenas mais um. Outro dia, outra "fita", outro playboy. Não fosse apresentador global, Luciano Huck não teria nem registrado boletim de ocorrência na delegacia.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Diogo Schelp e Duda Teixeira


Antes de ler esse artigo, você deve ler primeiro as dez páginas da matéria de capa da revista Veja de 3 de outubro de 2007, por ocasião dos 40 anos do assassinato do Che.

Digressão

No dia 30 de setembro passado, vi a capa da edição de 3 de outubro da revista Veja, bastião da classe média hipócrita que compõe seus assinantes e leitores assíduos. No dia 7 de outubro eu consegui uma cópia da revista que estampa em sua capa os dizeres "Che - A farsa do herói". Confesso que há tempos a Veja não me interessa nem mesmo para escarnecer do jornalismo que ela pratica.

Agora, contemplando a foto da capa, constato que a fumaça do charuto que Che Guevara fuma, de uniforme militar, compõe o retrato mais famoso do guerrilheiro latino-americano, enevoado. Destaca-se na imagem uma estrela vermelha. Não por acaso, obviamente.

Hoje é dia 8 de outubro de 2007. Há 40 anos, morria na Quebrada de Yuro, na Bolívia, o argentino Ernesto Guevara, o Che. A matéria de capa - teleológica tal qual qualquer opinião do colunista Diogo Mainardi, porta-voz da ultradireita conservadora na mesma publicação semanal - cumpre seu papel: denegrir a imagem do guerrilheiro latino-americano. Para tanto, Veja vale-se também de uma digressão, cujo ponto de partida é o próprio subtítulo da matéria: "Há quarenta anos morria o homem e nascia a farsa". Para Veja, a frase "Não disparem. Sou Che. Valho mais vivo do que morto" nunca mais foi lembrada, e atribui seu esquecimento "ao fato de que o pedido de misericórdia, o apelo desesperado pela própria vida e o reconhecimento da derrota não combinam com a aura mitológica criada em torno de tudo que se refere à vida e à morte de Ernesto Guevara Lynch de la Serna, argentino de Rosário, o Che, que antes, para os companheiros, era apenas 'el chancho', o porco, porque não gostava de banho e 'tinha cheiro de rim fervido'".

"Você vai matar um homem" - teria dito Che ao tenente boliviano Mário Terán, verdugo que o assassinou a mando do império estadunidense. Para Veja, "o esquecimento de uma frase e a perpetuação da outra resumem o sucesso da máquina de propaganda marxista na elaboração de seu maior e até então intocado mito". O pior é a presunção dessa matéria pífia, forjada no exemplo mais medíocre do pretenso jornalismo investigativo, ao ambicionar alguma intervenção iconoclasta. Como se as dez páginas dedicadas a desdenhar de Che Guevara tivessem alguma efetividade para além do universo de seus leitores.

A César o que é de César?

Há alguns meses li o livro "Náufrago da Utopia", do jornalista Celso Lungaretti, ex-guerrilheiro da Vanguarda Popular Revolucionária, sobre sua militância no movimento estudantil e sua inserção na guerrilha urbana em defesa da democracia e contra a ditadura militar; bem como as agruras por ele sofridas, coagido pelo Estado como preso político e, mais tarde, como anistiado. Escrevi pra ele dizendo que lê-lo era levar um soco diário na boca do estômago, dada a crueza da realidade e dos relatos. Tempos radicais, ações inflexíveis.

Che Guevara era um homem do seu tempo, no sentido drummondiano ("O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente"). Chamá-lo de "visionário" no sentido estrito é subestimar tanto o homem de carne e osso quanto a língua portuguesa.

Como homem de carne e osso, não pode ser apreendido dissociado da configuração sócio-histórica em que viveu: o auge da Guerra Fria. Quem não o faz e analisa eventos históricos sem a devida contextualização nem qualquer distanciamento, e pretende coisificar tolices como a referida "maníaca necessidade de matar pessoas" de Che, não pode ser levado a sério. A não ser por aqueles para os quais a matéria foi escrita, como que sob encomenda. Afinal, a César o que é de César.

Obrigado por fumar

Na carta dirigida ao leitor, afirma-se, em relação às fontes consultadas sobre Che Guevara, que incluíram "um companheiro seu de guerrilha, um colega no governo cubano e o responsável pela ordem que deu cabo de sua vida. Além disso, foram ouvidos seis historiadores, especialistas em Che ou na história de Cuba. O trabalho foi completado com a leitura de três biografias e dos textos escritos pelo guerrilheiro, distribuídos em oito volumes".

Imagino a reunião de pauta que definiu os responsáveis pela matéria e, obviamente, seu teor. Uma boa pista é o seguinte juízo de valor: "Por suas convicções ideológicas, Che tem seu lugar assegurado na mesma lata de lixo onde a história já arremessou há tempos outros teóricos e práticos do comunismo, como Lenin, Stalin, Trotsky, Mao e Fidel Castro". Outra é comparar Che Guevara a "uma figura patética" que, "como guerrilheiro, foi eficiente apenas em matar por causas sem futuro".

Quanto aos repórteres Diogo Schelp e Duda Teixeira, que assinam a matéria da Veja, por que eles dão título a esse artigo? - você pode estar se perguntando. Eles são apenas empregados. Nomes na folha de pagamento da Veja, bastião da hipocrisia pequeno-burguesa à brasileira de gente que sofre de um torcicolo cultural estruturante e estruturado que engendra aspirações como mandar os filhos pra Disney e, depois, pra universidade pública de carro popular zero quilômetro.

Diogo Schelp e Duda Teixeira não são especialistas em Che Guevara, obviamente. Eles são como o personagem Nick Naylor, interpretado pelo ator Aaron Eckhart, em "Obrigado por fumar". No filme, Naylor é o porta-voz da Academy of Tobacco Studies. Ele é um lobbista no sentido estrito. Ele apenas fala para/por quem pagar mais. No final das contas, ele não é nada.

Assim como Diogo Schelp e Duda Teixeira. Eles não são nada. Por isso dão nome a esse artigo. Daqui a 40 anos ninguém se lembrará mesmo deles...