sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Por que corro


Se alguém pergunta por que eu corro, respondo: pela inconstância. Correr subverte a noção de espaço-tempo. Encurta as distâncias. Aproxima as pessoas e os lugares.

Correr é mudar de estado. Algumas verdades se liquefazem. Escorrem. E algumas certezas se dissipam com o atrito entre meu corpo e o resto das forças que sustentam o Universo.

Ao começar a correr, sinto logo meus órgãos se reposicionando, ajustando-se, qualquer que seja meu pace inicial. É quando a máquina começa a reagir...

Não preciso conhecer meus músculos pelos respectivos nomes para senti-los. Não preciso saber que tecidos compõem minhas articulações para ouvi-las em ação. Não preciso de muito: só de mim mesmo.

Quando corro, sei que minha alma também verte uma espécie de choro ancestral, inspirado em registros proteicos de antigas cadeias helicoidais que chegaram até aqui. Um legado milenar: correr é fugir; fugir é não morrer, macaco!

E essa certeza líquida me permite sentir que, enquanto mais chão fica para trás, meu corpo continua vivo.

Isso me basta...

segunda-feira, 21 de maio de 2012

O estrategista

Braço direito do meu rei, fui o cérebro por trás de tantas batalhas e vitórias. Antes, porém, minha habilidade para transformar meninos assustados em animais ávidos por sangue me tornou conhecido em todo o reino. Mais do que saber matar, eu sabia ensinar a matar, incitando e contendo o animal selvagem que existe no espírito de cada homem.

A mim, que nunca tive pai nem mãe, coube equacionar nas fileiras da caserna as histórias de vida e as tragédias humanas ali reunidas. Para tanto, dominava meus homens: seu passado, seu presente, seu futuro. Eu nunca me esquecia.

Observador pertinaz, aprendera muito cedo, também, a importância de escutar. Ouvindo meus homens, captava o íntimo, a essência, o instinto, as verdades de cada um. Depois, valia-me da minha memória extraordinária para armazenar e acessar essa informação — como um grande compêndio de conhecimento acumulado.

Envaideci-me, não a ponto de me tornar desprezível ou arrogante, mas de refinar ainda mais minhas habilidades natas, para evidenciá-las. Meu rei só precisava olhar, para que eu entendesse sua ordem. Era uma relação que prescindia de palavras.

Mas não era a consciência da importância da arte da guerra para a expansão e a manutenção das fronteiras que me tornava mais e mais leal a meu rei. Nossa cumplicidade parecia ancestral.

Sobretudo, ser leal a ele consistia, antes de mais nada, em ser leal a mim, filho bastardo que era. E todos sabem de onde vêm e para onde vão os bastardos...

Por minha vez, sempre tive consciência de que eu era o furor assassino adormecido sob o olhar terno do meu rei. Elite do oficialato, era seu estrategista, sua sede de sangue, seu braço forte. Gostava de acreditar que isso me tornava invencível.

Depois do primeiro retorno de Saturno, defrontei-me com meu maior inimigo: eu mesmo. Meus doces sonhos de antes, com cheiro e gosto de sangue, e aquele tilintar ensurdecedor de aço contra aço, com ossos se partindo sob o fio das espadas, e homens transmutados em bestas-feras, haviam se transformado em pesadelos em que minha cabeça era decepada no campo de batalha.

Sim, aquela velha nuvem, outrora esparsa, de pensamentos obsessivos, embotara meus sonhos mais uma vez. E minha visão. E comecei a temer uma primeira derrota militar, em vez de ensejar em meus homens a conquista de mais uma vitória.

Passei a dormir cada vez menos e a delirar cada vez mais. Quando conseguia pegar no sono, acordava com a cabeça empapada e os lençóis encharcados de suor.

Maldita nuvem. Cada vez mais densa. Como saber se estava enlouquecendo? Como saber se o que assistia diante dos meus olhos estava realmente acontecendo?

O que havia me tornado?

Comecei a pressentir uma sublevação nas minhas fileiras, uma movimentação de oficiais ardilosos que invejavam minha posição. Tinha que voltar ao campo de batalha. Precisava empunhar a espada novamente para convencer meu rei — e a mim mesmo, sobretudo — de que eu continuava o mesmo afortunado na guerra; aquele que nunca sofrera uma derrota sequer.

Mal sabia eu que meu destino já tinha sido traçado. No olhar do rei não havia mais a mesma cumplicidade. Ou, pelo menos, eu não conseguia mais enxergá-la.

Percebia agir o oficial a quem caberia me substituir no comando das tropas, por ter ele sabido se aproveitar daquele momento, aproximando-se do rei. Eu havia sido preterido quando fui derrotado pelo meu medo de perder. Sentia-me traído por ambos.

A mim restou o envenenamento...

Com minha morte, meu ódio se tornou meu maior legado — filho da deslealdade e da traição das quais fui vítima.


Brasília, 21 de maio de 2012