domingo, 30 de dezembro de 2007

Sempre mais do mesmo?

No dia que antecede o Réveillon, um pouco de Drummond para celebrar a passagem do ano. E, como diz o Lungaretti, que as utopias se realizem no ano que vai nascer, quaisquer que sejam elas. Ou não.

Feliz 2008!

Agora falta pouco...

Passagem do ano - C.D.A.

O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor

[ da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações

[ de aniversário, formatura, promoção, glória,
[ doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o

[ clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos

[ séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras

[ espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

O mito do Robin Hood à brasileira?


Luciano Huck foi assaltado. Levaram seu Rolex. Quem se importa? - você pode se perguntar, como eu. Mas acredite, virou capa da revista Época e páginas amarelas da revista Veja. Eu não li a matéria nem a entrevista; mas tive que ler o artigo que o apresentador da Globo publicou na Folha de São Paulo e a crônica do rapper e escritor Ferréz, autor de Capão Pecado, sobre essa "negociação da realidade", também publicada na Folha.

Eis a negociação da realidade: arma apontada contra a cara, o playboy da vez entrega o Rolex. Sem hesitar. O mano de capacete, armado, "tá na correria". "Se reagir, vira pó" - como diz o Mano Brown, outro trovador do Capão Redondo. Todo mundo sabe.

Eu tenho uma visão bem pouco ortodoxa dos crimes contra o patrimônio. Diferentemente do tráfico de drogas, que é uma transação econômica que envolve fluxo bilateral de bens e renda entre os atores dessa "negociação da realidade", o traficante e o comprador, e obedece a mecanismos de oferta e demanda, em crimes contra o patrimônio, como furto, roubo e assalto, o fluxo de bens e renda entre o criminoso e a vítima é unilateral. Não há qualquer troca de bens econômicos. Substitui-se a posse de algo pela ausência de posse, dialeticamente.

É a lei da bala, simbólica e contundente. O "você sabe com quem está falando?" do mano que aponta uma "quadrada" ou um "três-oitão" e aproxima dois Brasis: o Brasil que não tem e o Brasil que tem. Mas não da mesma forma como também aproxima o Brasil dos "otários", como eu, mão-de-obra barata, e o Brasil dos patrões, abastados.

Eu sei que não passo de um "otário" que enriquece o patrão, empresário. Em relação a ele, meus campos de possibilidades são cerceados pelo mercado de trabalho na contemporaneidade. Se eu não quiser mais, tem uma fila de candidatos ao meu emprego. Como preciso do meu emprego, sigo "otário".

Afinal, quem não tem, quer ter. Quem tem, é vítima em potencial de quem não tem, mas quer ter a qualquer preço. É assim com "correria". Como um Robin Hood às avessas que toma de quem tem para si. O "correria" é um Robin Hood aventureiro, híbrido do homem cordial (de Sérgio Buarque de Hollanda) e do caos urbano à brasileira. Sem arco e flexa nem estudo, mas "com ferro na cinta", esse Robin Hood à brasileira é o anti-herói nacional contemporâneo.

Aposto que o "correria" que roubou o Rolex do Luciano Huck roubou apenas mais um. Outro dia, outra "fita", outro playboy. Não fosse apresentador global, Luciano Huck não teria nem registrado boletim de ocorrência na delegacia.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Diogo Schelp e Duda Teixeira


Antes de ler esse artigo, você deve ler primeiro as dez páginas da matéria de capa da revista Veja de 3 de outubro de 2007, por ocasião dos 40 anos do assassinato do Che.

Digressão

No dia 30 de setembro passado, vi a capa da edição de 3 de outubro da revista Veja, bastião da classe média hipócrita que compõe seus assinantes e leitores assíduos. No dia 7 de outubro eu consegui uma cópia da revista que estampa em sua capa os dizeres "Che - A farsa do herói". Confesso que há tempos a Veja não me interessa nem mesmo para escarnecer do jornalismo que ela pratica.

Agora, contemplando a foto da capa, constato que a fumaça do charuto que Che Guevara fuma, de uniforme militar, compõe o retrato mais famoso do guerrilheiro latino-americano, enevoado. Destaca-se na imagem uma estrela vermelha. Não por acaso, obviamente.

Hoje é dia 8 de outubro de 2007. Há 40 anos, morria na Quebrada de Yuro, na Bolívia, o argentino Ernesto Guevara, o Che. A matéria de capa - teleológica tal qual qualquer opinião do colunista Diogo Mainardi, porta-voz da ultradireita conservadora na mesma publicação semanal - cumpre seu papel: denegrir a imagem do guerrilheiro latino-americano. Para tanto, Veja vale-se também de uma digressão, cujo ponto de partida é o próprio subtítulo da matéria: "Há quarenta anos morria o homem e nascia a farsa". Para Veja, a frase "Não disparem. Sou Che. Valho mais vivo do que morto" nunca mais foi lembrada, e atribui seu esquecimento "ao fato de que o pedido de misericórdia, o apelo desesperado pela própria vida e o reconhecimento da derrota não combinam com a aura mitológica criada em torno de tudo que se refere à vida e à morte de Ernesto Guevara Lynch de la Serna, argentino de Rosário, o Che, que antes, para os companheiros, era apenas 'el chancho', o porco, porque não gostava de banho e 'tinha cheiro de rim fervido'".

"Você vai matar um homem" - teria dito Che ao tenente boliviano Mário Terán, verdugo que o assassinou a mando do império estadunidense. Para Veja, "o esquecimento de uma frase e a perpetuação da outra resumem o sucesso da máquina de propaganda marxista na elaboração de seu maior e até então intocado mito". O pior é a presunção dessa matéria pífia, forjada no exemplo mais medíocre do pretenso jornalismo investigativo, ao ambicionar alguma intervenção iconoclasta. Como se as dez páginas dedicadas a desdenhar de Che Guevara tivessem alguma efetividade para além do universo de seus leitores.

A César o que é de César?

Há alguns meses li o livro "Náufrago da Utopia", do jornalista Celso Lungaretti, ex-guerrilheiro da Vanguarda Popular Revolucionária, sobre sua militância no movimento estudantil e sua inserção na guerrilha urbana em defesa da democracia e contra a ditadura militar; bem como as agruras por ele sofridas, coagido pelo Estado como preso político e, mais tarde, como anistiado. Escrevi pra ele dizendo que lê-lo era levar um soco diário na boca do estômago, dada a crueza da realidade e dos relatos. Tempos radicais, ações inflexíveis.

Che Guevara era um homem do seu tempo, no sentido drummondiano ("O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente"). Chamá-lo de "visionário" no sentido estrito é subestimar tanto o homem de carne e osso quanto a língua portuguesa.

Como homem de carne e osso, não pode ser apreendido dissociado da configuração sócio-histórica em que viveu: o auge da Guerra Fria. Quem não o faz e analisa eventos históricos sem a devida contextualização nem qualquer distanciamento, e pretende coisificar tolices como a referida "maníaca necessidade de matar pessoas" de Che, não pode ser levado a sério. A não ser por aqueles para os quais a matéria foi escrita, como que sob encomenda. Afinal, a César o que é de César.

Obrigado por fumar

Na carta dirigida ao leitor, afirma-se, em relação às fontes consultadas sobre Che Guevara, que incluíram "um companheiro seu de guerrilha, um colega no governo cubano e o responsável pela ordem que deu cabo de sua vida. Além disso, foram ouvidos seis historiadores, especialistas em Che ou na história de Cuba. O trabalho foi completado com a leitura de três biografias e dos textos escritos pelo guerrilheiro, distribuídos em oito volumes".

Imagino a reunião de pauta que definiu os responsáveis pela matéria e, obviamente, seu teor. Uma boa pista é o seguinte juízo de valor: "Por suas convicções ideológicas, Che tem seu lugar assegurado na mesma lata de lixo onde a história já arremessou há tempos outros teóricos e práticos do comunismo, como Lenin, Stalin, Trotsky, Mao e Fidel Castro". Outra é comparar Che Guevara a "uma figura patética" que, "como guerrilheiro, foi eficiente apenas em matar por causas sem futuro".

Quanto aos repórteres Diogo Schelp e Duda Teixeira, que assinam a matéria da Veja, por que eles dão título a esse artigo? - você pode estar se perguntando. Eles são apenas empregados. Nomes na folha de pagamento da Veja, bastião da hipocrisia pequeno-burguesa à brasileira de gente que sofre de um torcicolo cultural estruturante e estruturado que engendra aspirações como mandar os filhos pra Disney e, depois, pra universidade pública de carro popular zero quilômetro.

Diogo Schelp e Duda Teixeira não são especialistas em Che Guevara, obviamente. Eles são como o personagem Nick Naylor, interpretado pelo ator Aaron Eckhart, em "Obrigado por fumar". No filme, Naylor é o porta-voz da Academy of Tobacco Studies. Ele é um lobbista no sentido estrito. Ele apenas fala para/por quem pagar mais. No final das contas, ele não é nada.

Assim como Diogo Schelp e Duda Teixeira. Eles não são nada. Por isso dão nome a esse artigo. Daqui a 40 anos ninguém se lembrará mesmo deles...

quarta-feira, 20 de junho de 2007

O Brasil não é um país sério

Assim como Nelson Rodrigues atribuiu a Otto Lara Resende a frase "O mineiro só é solidário no câncer", que o jornalista mineiro Lara Resende sempre negou, e a coisificação da frase em si tornou-se muito mais relevante do que o fato de ele tê-la proferido ou não, também se atribuiu ao estadista francês Charles de Gaulle as palavras "O Brasil não é um país sério", em visita ao país em 1960. Certo é que o Brasil é um país pitoresco, sobretudo ao olhar estrangeiro.

David Ben-Gurion, um dos fundadores do Estado de Israel, ao se referir à renúncia de Jânio Quadros, perguntou-se como alguém poderia renunciar em um país com tanta água. Questionamento que pode parecer ingênuo para um brasileiro que desperdiça água lavando seu carro no fim-de-semana, mas é bem pertinente quando se trata de Eretz Israel.

Ainda que De Gaulle não tenha mesmo dito a frase a ele atribuída, qualquer brasileiro mais ou menos consciente e realista há de concordar com o francês. Este país não é sério, definitivamente.

Como levar a sério, por exemplo, uma nação em que a pasta do Turismo é administrada por uma sexóloga que, no último dia 13 de maio, afirmou "Relaxa e goza, porque depois você esquece todos os transtornos", ao comentar a crise aeroportuária hoje recorrente, deflagrada em setembro de 2006, quando 153 passageiros e tripulantes do vôo 1907 da Gol foram imolados no choque entre uma aeronave Boeing 737-800 SFP e um jato Embraer Legacy 600, que pertencia a uma empresa estadunidense e era pilotado por estadunidenses? O discurso da Ministra Marta Suplicy é o discurso da autoridade, certo?

sexta-feira, 11 de maio de 2007

Papo de antropólogo urbano

Conhece o "você sabe com quem está falando?" de quem opta pelo mundo do crime? É a hora que ele aponta um 38 velho pra sua cara. Diferente do playboy que pergunta "você sabe com quem está falando?" porque tem um parente endinheirado e/ou influente que, tacitamente, endossa qualquer atitude do FDP.

O "você sabe com quem está falando?" do bandido é tão efetivo quanto o do playboy, já que jiu-jitsu nenhum torna o corpo imune à bala, obviamente. A diferença é que, para o bandido, o que transforma o playboy em vítima em potencial é exatamente o "você sabe com quem está falando?" dele. O playboy tem, o bandido quer.

Eu aprendi isso em quatro anos como pesquisador no Setor P-Sul. Os caras vão "pros trabalho", vão "trabalhar". Isso é posição e situação de classe. Eu não estou falando de pobre e rico, mas de bandido e alvo. Nem todo pobre é bandido, claro. Nem todo alvo é rico. O alvo é quem está no lugar errado e na hora errada. O encontro entre os dois mundos engendra uma "negociação da realidade". O resto do mundo pára. É só você e ele, e você vai perder. Afinal, você sabe com quem está falando?

Como diz o Mano Brown, "a senzala avisou, mauricinho agora paga o preço". Ou, referindo-se a um contexto bem distinto, como diz a Tracy Chapman, "choose sides or run for your life".

quinta-feira, 10 de maio de 2007

Dia das Mães

Tem coisas que marcam nossas vidas. Pense na sua vida, na memória mais remota da sua infância. Quem estava lá com você?

Eu tenho antigas lembranças em preto e branco de uma moça bonita, de vinte e poucos anos, branquinha, de olhos claros: minha mãe. O corpo dela foi meu primeiro abrigo, minha primeira fonte de sustento.

Mas ser mãe não é apenas ser genitora e provedora. Os sentimentos ligados à maternidade não estão, penso eu, necessariamente vinculados à vida intra-uterina e à amamentação. Que o digam as mães que escolhem amar seus filhos adotivos como se fossem biológicos.

Ser mãe é, sobretudo, amar e ensinar. Educar para a cidadania e para o respeito ao outro. Quem me ensinou isso foi minha mãe, cristã, que sempre disse que Jesus Cristo era exemplo do varão perfeito. Ser mãe é acolher e acalentar, como fez Maria, mãe de Jesus. Ser mãe é instruir, orientar para o bem, como também fez a minha.

Hoje, aos 29 anos, não sou mais o menino da década de 80, encantado com aquela moça bonita e doce. Eu sou o cara que cresceu ouvindo “homem é aquele que olha para o alto”. E a moça bonita, que sempre teve razão em quase tudo, tornou-se uma senhora bonita que, aos 51 anos, prefere a roça à cidade, o jardim do sítio à vista do apartamento vizinho.

Há muito tempo li que ser mãe é padecer no paraíso. Isso eu acho que nunca vou entender...

À minha mãe, pelo maior legado dos pais para os filhos: o amor e a educação, e a todas as mães, a homenagem mais sincera. Os versos de uma poesia de um dos maiores escritores da língua portuguesa de todos os tempos, o poeta itabirano Carlos Drummond de Andrade. Poesia essa musicada por Milton Nascimento e gravada no álbum Clube da Esquina 2, de 1978, ano em que eu nasci.

Canção Amiga (C.D.A.)

Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.

Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.

Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.

Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.

Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.

quarta-feira, 2 de maio de 2007

Cego e surdo

Tem gente que deveria pensar antes de rebolar. Tem gente que deveria pensar a rebolar.

Tem tempo que não penso sociologicamente. Tem tempo que não reflito nem mesmo sobre a Síndrome de Donnie Brasco. Tem tempo que não escrevo ensaios antropológicos. Nunca senti saudades da UnB, eu acho; mas ouvir Thaíde e DJ Hum, depois de anos, despertou uma lembrança nostálgica de livros resenhados em madrugadas insanas e ensaios escritos depois do prazo de entrega. Como era bom ser um estudante picareta e ter boas notas!

Mas como é extremamente mais difícil ser cego e surdo no Brasil. Principalmente quando você vê um deputado corrupto chorar na televisão numa semana, e duas semanas depois você ouve os versos "o deputado foi fisgado e pra dar uma de coitado chorou feito criança em frente à tela. Safado, ladrão de pai de família trabalhador. Tinha que ter saído da CPI e ido direto pr'uma cela limpar cocô de corredor em corredor".

O álbum "Assim caminha a humanidade", de Thaíde e DJ Hum, foi lançado em 2000, e continua extremamente pertinente. O mote do cenário político brasileiro é a corrupção. Ninguém confia nos políticos como um todo, independente de partido.

Aliás, no Brasil, partido parece time de futebol, e político, jogador. Só eleitor não é que nem torcedor. Torcedor torce porque quer, por opção. Eleitor vota porque é obrigatório. Será que um dia haverá vontade política para tornar o voto facultativo?

É melhor ser cego e surdo ou rebolar sem pensar?

quarta-feira, 18 de abril de 2007

O coreano que passou geral

Jornalista precisa contar história. Eu não sou jornalista. Portanto, contento-me com uma digressão simples.

Que sociedade produz um massacre em que 59 pessoas são baleadas por uma das vítimas? Vinte e seis feridos à bala sobreviveram, mas houve 33 mortes, incluindo a do suicida. Tão vítima quanto as outras.

O sul-coreano Cho Seung Hui "passou geral" no campus da Virginia Tech e os cidadãos estadunidenses não estão envergonhados, todos e cada um deles? Sim, envergonhados daquela sociedade sectária, hipócrita, racista e extremamente competitiva e revanchista que pari ataques à bala com vítimas às duzias, freqüentemente.

A nossa sociedade é sectária, hipócrita, racista e extremamente competitiva e revanchista também, mas é bem diferente da estadunidense. Aqui há, por exemplo, grupos paramilitares em guerra com as facções do crime organizado globalmente que dominam os morros cariocas e se inserem no tráfico internacional de drogas. Mas a dita opinião pública se comove com a tragédia da criança arrastada até a morte, presa ao cinto de segurança, e se indigna com o pai que esqueceu seu filho no carro, também até a morte.

Lá nos States se decreta luto oficial quando acontece um novo massacre de dúzias de estudantes em instituições de ensino. E o Wal Mart continua vendendo armas na Virgina.

Aqui no Brasil a guerra civil e o banditismo em todos os níveis da sociedade ainda permitem que alguns se encastelem em seus potentados, enquanto a ralé, como eu, se engalfinha em um mercado de trabalho mal remunerado que não absorve nem mesmo quem sempre investiu em capital intelectual. Cada sociedade tem suas mazelas, sim.

Não vim falar de samambaia e xaxim! E se quiser ler uma opinião mais ou menos jornalística, leia o blog do Lelê Teles. Mas cuidado que ele é anti-semita.

terça-feira, 20 de março de 2007

Se queres ser universal, canta tua aldeia

Alguém já se perguntou se as referências a “Japan” e “Japanese” em músicas do CAKE (banda de Sacramento, CA) são mera coincidência, assim como carro é um tema recorrente nelas?

“You get the upper hand and sell it to Japan”. You turn the screws, Prolonging the Magic.

Mas por que pro Japão?

“Well, a lot of good cars are Japanese”. Stickshifts and safetybelts, Fashion Nugget.

Coincidência?!

Afinal, acho que até mesmo “I bombed Korea” e a globalizante “Wheels” são músicas bem “red, white and blue”, não são? Bem, eles são estadunidenses.

“(...) a Japanese man in a business suit singing smokets in your eyes”. Wheels, Pressure Chief.

Não sei se esqueci alguma, mas aí está uma lista de músicas relacionadas a carros, por álbum.

Motorcade of Generosity (1994)

Além do título do álbum, há uma menção irônica em “Comanche” ao assim chamado progresso: “If you want to have cities, you’ve got to build roads”.


Fashion Nugget (1996)

The Distance
Race Car Ya-Yas
Stickshifts and safetybelts


Prolonging the Magic (1998)

Satan is my motor
Alpha Beta Parking Lot


Comfort Eagle (2001)

Short Skirt/Long Jacket
Comfort Eagle
Long line of cars


Pressure Chief (2004)

Wheels
Take it all away
Carbon Monoxide

“Se queres ser universal, canta tua aldeia”, dizia Tolstói. Ao cantar suas cores e aldeias (“from the streets of Sacramento to the free ways of LA”), o CAKE canta seu modus vivendi; com o qual nós, brasileiros, temos sido “catequizados” pelo American way of life desde o final da Segunda Guerra.

Há quantas décadas, por exemplo, o carro se tornou mais do que tão-somente um bem de consumo durável? É um símbolo de status que indica o lugar social de cada um na sociedade de consumo. E quem não tem carro nem CNH, que posição de classe ocupa?

Bá... mas que bá!

E ainda tem gente que se diz preocupada com o aquecimento global. Queria ver todo mundo indo trabalhar de bicicleta ou a pé. Capaz...

Bando de hipócritas.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007

Vida de barnabé

Amanhã, dia 27 de fevereiro, o CESPE divulga a lista dos aprovados no Teste de Pré-Seleção (TPS) do Instituto Rio Branco, primeira fase do concurso de admissão à carreira diplomática. E eu, que sempre menosprezei as chamadas relações exteriores e nunca havia pensado, por conseguinte, em submeter-me a tal prova, hoje espero ansioso pela divulgação do resultado.

Se passar, a radicalização do desafio é inquestionável. E como estou nessa mesmo (quase) pelo desafio apenas, não tenho nada a perder...

Quer dizer, além dos cem reais da inscrição, claro!

Mas eis que me aflige uma questão. Por que o serviço público é tido como a melhor opção de um acesso digno ao mercado de trabalho aqui em Brasília? Senão a única. Afinal, quem está disposto a trabalhar oito horas por dia por menos de 1000 reais? Quem se submete a trabalhar na iniciativa privada, sem carteira assinada nem vínculo empregatício formal, privado dos direitos trabalhistas?

Qualquer um que precise, ora bolas!

Eu, por exemplo, trabalhei numa produtora de cinema, institucionais e documentários entre abril de 2005 e agosto de 2006, sem qualquer vínculo formal. Quando meu antigo patrão resolveu me dispensar, já que a empresa dele estava prestes a "quebrar", não recebi nada. Nenhum benefício assegurado por lei. Nada mesmo.

O que eu fiz?! Nada, infelizmente. Se tivesse tentado qualquer coisa no campo legal, poderia ter mesmo "queimado meu filme", já que o mercado audiovisual aqui é tão provinciano quanto o é a Cidade Modernista; e meu antigo patrão é referência na produção executiva de longas-metragens aqui.

Com ele, já trabalhei em set de filmagem por 22 horas, ininterruptamente, como assistente de platô. Das 5 às 3 da manhã do dia seguinte: a diária mais "punk" que encarei no cinema, suficiente para desistir da pretensão de ser cineasta. Ser cineasta é mesmo profissão de pequeno-burguês que trabalha que nem peão, e vive do glamour conferido às atividades cinematográficas. Tudo peão. Menos o roteirista, claro!

Eu sou documentarista. Não sou cineasta. Mas privado de dinheiro depois de três meses desempregado, com aluguel atrasado e dívidas, senti-me coagido a voltar a dar aulas de inglês como língua estrangeira, que paga pouco e exige muito.

Foda! Puta que pariu. Vou ter mesmo que passar no concurso da ANVISA. Ou Itamaraty, se passar no TPS.

There's room for you inside - Pink Floyd

domingo, 25 de fevereiro de 2007

Eremias Delizoicov (2)

Acabei de devorar o livro "Náufrago da Utopia", do jornalista Celso Lungaretti. Lungaretti militava no movimento estudantil secundarista no final da década de 1960. Com o recrudescimento da repressão contra a mobilização popular que reagiu contra o autoritarismo da Ditadura, em 1968, ele adere à luta armada. Ingressa na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) com outros secundaristas, dentre eles seu velho amigo Eremias.

Eu sou absolutamente passional e bem pouco meditativo. Quem me conhece, sabe. Desde ontem de manhã, tenho crises de choro lendo o livro ou pensando na leitura.

Por algum mecanismo psi cujo funcionamento desconheço por inteiro, reconheço-me em Eremias. Talvez porque, na adolescência, sentia-me inútil em um mundo onde mais valia o que você tinha, e não quem você era; e que hoje, aos 28 anos, me deprime, mutila meu sorriso. Aos 17 anos, depois de ler "Meu Amigo Che", sentia que deveria ter nascido numa época onde o ideal (cristão?) de se oferecer como cordeiro ao sacrifício por uma causa maior fazia sentido para alguns, e sobrepunha-se ao ideal consumista dos adolescentes do meu tempo, que completam 18 anos como um rito de passagem para a aquisição da CNH e de um automóvel comprado pelos pais.

Sempre fui tido como líder negativo no Ensino Médio. Presidente do Grêmio Estudantil do Centro Educacional Setor Oeste, em Brasília, tentei destituir a Direção da escola com a publicação de um órgão informativo, redigido por mim e pago pela presidente da Associação de Pais e Mestres, também professora de Biologia, que reproduziu sem ler o conteúdo, e deu um tiro no próprio pé. Eu tinha 17 anos à época, e me senti como teria me sentido ao expropriar qualquer bem material por um ideal revolucionário...

Mas aquela "minha guerrinha de faz-de-conta" soçobrou. Sozinho, subia no banco e gritava mais alto do que todos. Quase fui linchado pelos alunos do 3º ano. O ano letivo acabou. Eu entreguei a prova de recuperação de Química em branco. Meu sacrifício aos 17 anos: imolei meu ano letivo de 1995.

A morte de Eremias, ocorrida em 1969, há quase 38 anos, quase uma década antes do meu nascimento, hoje alimenta meu ódio e faz meu estômago doer. E torna pífia e sem sentido minha luta de adolescente "engajado".

Eremias (Celso Lungaretti)

Era mau aluno,
treinava judô.
Sorriso moleque,
morreu em pedaços,
35 balaços.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

Drummond

A flor e a náusea - C.D.A.

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens macias avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Eremias Delizoicov

Eremias Delizoicov (27 de março de 1951 - 16 de outubro de 1969)

Militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), foi morto por agentes do DOI/CODI-RJ com 35 tiros ao resistir à prisão na Rua Toropi, 59, em Vila Kosmos, Rio de Janeiro.

Essa homenagem ao menino que o AI-5 e o acordo MEC-USAID forjaram homem - e como dizia minha mãe, "homem é aquele que olha para o alto" - é também uma homenagem a todos que caíram em combate, aos que "desapareceram" e aos que sobreviveram à Ditadura. Em especial, ao guerrilheiro Celso Lungaretti, amigo de infância de Eremias.

Eremias Delizoicov, filho de Jorge Delizoicov e Liubov Gradinar, irmão de Demétrio Delizoicov Neto, teve seus restos mortais incinerados em 25 de maio de 1975.