
Antes de ler esse artigo, você deve ler primeiro as dez páginas da matéria de capa da revista Veja de 3 de outubro de 2007, por ocasião dos 40 anos do assassinato do Che.
Digressão
No dia 30 de setembro passado, vi a capa da edição de 3 de outubro da revista Veja, bastião da classe média hipócrita que compõe seus assinantes e leitores assíduos. No dia 7 de outubro eu consegui uma cópia da revista que estampa em sua capa os dizeres "Che - A farsa do herói". Confesso que há tempos a Veja não me interessa nem mesmo para escarnecer do jornalismo que ela pratica.
Agora, contemplando a foto da capa, constato que a fumaça do charuto que Che Guevara fuma, de uniforme militar, compõe o retrato mais famoso do guerrilheiro latino-americano, enevoado. Destaca-se na imagem uma estrela vermelha. Não por acaso, obviamente.
Hoje é dia 8 de outubro de 2007. Há 40 anos, morria na Quebrada de Yuro, na Bolívia, o argentino Ernesto Guevara, o Che. A matéria de capa - teleológica tal qual qualquer opinião do colunista Diogo Mainardi, porta-voz da ultradireita conservadora na mesma publicação semanal - cumpre seu papel: denegrir a imagem do guerrilheiro latino-americano. Para tanto, Veja vale-se também de uma digressão, cujo ponto de partida é o próprio subtítulo da matéria: "Há quarenta anos morria o homem e nascia a farsa". Para Veja, a frase "Não disparem. Sou Che. Valho mais vivo do que morto" nunca mais foi lembrada, e atribui seu esquecimento "ao fato de que o pedido de misericórdia, o apelo desesperado pela própria vida e o reconhecimento da derrota não combinam com a aura mitológica criada em torno de tudo que se refere à vida e à morte de Ernesto Guevara Lynch de la Serna, argentino de Rosário, o Che, que antes, para os companheiros, era apenas 'el chancho', o porco, porque não gostava de banho e 'tinha cheiro de rim fervido'".
"Você vai matar um homem" - teria dito Che ao tenente boliviano Mário Terán, verdugo que o assassinou a mando do império estadunidense. Para Veja, "o esquecimento de uma frase e a perpetuação da outra resumem o sucesso da máquina de propaganda marxista na elaboração de seu maior e até então intocado mito". O pior é a presunção dessa matéria pífia, forjada no exemplo mais medíocre do pretenso jornalismo investigativo, ao ambicionar alguma intervenção iconoclasta. Como se as dez páginas dedicadas a desdenhar de Che Guevara tivessem alguma efetividade para além do universo de seus leitores.
A César o que é de César?
Há alguns meses li o livro "Náufrago da Utopia", do jornalista Celso Lungaretti, ex-guerrilheiro da Vanguarda Popular Revolucionária, sobre sua militância no movimento estudantil e sua inserção na guerrilha urbana em defesa da democracia e contra a ditadura militar; bem como as agruras por ele sofridas, coagido pelo Estado como preso político e, mais tarde, como anistiado. Escrevi pra ele dizendo que lê-lo era levar um soco diário na boca do estômago, dada a crueza da realidade e dos relatos. Tempos radicais, ações inflexíveis.
Che Guevara era um homem do seu tempo, no sentido drummondiano ("O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente"). Chamá-lo de "visionário" no sentido estrito é subestimar tanto o homem de carne e osso quanto a língua portuguesa.
Como homem de carne e osso, não pode ser apreendido dissociado da configuração sócio-histórica em que viveu: o auge da Guerra Fria. Quem não o faz e analisa eventos históricos sem a devida contextualização nem qualquer distanciamento, e pretende coisificar tolices como a referida "maníaca necessidade de matar pessoas" de Che, não pode ser levado a sério. A não ser por aqueles para os quais a matéria foi escrita, como que sob encomenda. Afinal, a César o que é de César.
Obrigado por fumar
Na carta dirigida ao leitor, afirma-se, em relação às fontes consultadas sobre Che Guevara, que incluíram "um companheiro seu de guerrilha, um colega no governo cubano e o responsável pela ordem que deu cabo de sua vida. Além disso, foram ouvidos seis historiadores, especialistas em Che ou na história de Cuba. O trabalho foi completado com a leitura de três biografias e dos textos escritos pelo guerrilheiro, distribuídos em oito volumes".
Imagino a reunião de pauta que definiu os responsáveis pela matéria e, obviamente, seu teor. Uma boa pista é o seguinte juízo de valor: "Por suas convicções ideológicas, Che tem seu lugar assegurado na mesma lata de lixo onde a história já arremessou há tempos outros teóricos e práticos do comunismo, como Lenin, Stalin, Trotsky, Mao e Fidel Castro". Outra é comparar Che Guevara a "uma figura patética" que, "como guerrilheiro, foi eficiente apenas em matar por causas sem futuro".
Quanto aos repórteres Diogo Schelp e Duda Teixeira, que assinam a matéria da Veja, por que eles dão título a esse artigo? - você pode estar se perguntando. Eles são apenas empregados. Nomes na folha de pagamento da Veja, bastião da hipocrisia pequeno-burguesa à brasileira de gente que sofre de um torcicolo cultural estruturante e estruturado que engendra aspirações como mandar os filhos pra Disney e, depois, pra universidade pública de carro popular zero quilômetro.
Diogo Schelp e Duda Teixeira não são especialistas em Che Guevara, obviamente. Eles são como o personagem Nick Naylor, interpretado pelo ator Aaron Eckhart, em "Obrigado por fumar". No filme, Naylor é o porta-voz da Academy of Tobacco Studies. Ele é um lobbista no sentido estrito. Ele apenas fala para/por quem pagar mais. No final das contas, ele não é nada.
Assim como Diogo Schelp e Duda Teixeira. Eles não são nada. Por isso dão nome a esse artigo. Daqui a 40 anos ninguém se lembrará mesmo deles...