quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Christophe, eu sou seu pai


     Todas as histórias de vida, por mais distintas que possam parecer, têm um denominador comum: a essência humana. Longe de mim menosprezar determinantes que condicionam o homem, como espaço-tempo, mas creio que as histórias e os papéis que representamos todos se repetem. 

     Muda-se o cenário, adapta-se o enredo, mas a essência é a mesma. Somos confusos até quando precisamos ou tentamos ser coerentes. Às vezes, fingir que não aconteceu é a melhor estratégia de sobrevivência.

     Funciona assim comigo também. Até a morte do meu pai, em 2000, quando eu tinha 22 anos, nossa relação havia sido de intolerância e incompreensão mútuas, especialmente a partir da adolescência. À época de seu rito de passagem, o distanciamento físico e psicológico há muito já havia selado o destino da nossa relação de pai e filho.

     No entanto, passada a primeira década, não é a certeza inexorável da sua morte o que mais me oprime. Mesmo eu não tendo ido ao enterro em sua cidade natal, sei que ele foi sepultado. O que realmente me atordoa até hoje são as lembranças evocadas por uma série de ligações que recebi de um sujeito que nunca conheci pessoalmente.

     Quando o telefone tocou pela primeira vez, eu era um universitário morando sozinho, fora da minha cidade natal, estudando Publicidade em uma instituição de ensino privada no Triângulo Mineiro. Desfrutava das poucas regalias que a mesada enviada por minha mãe, francesa, permitia. Estava decidido a morar no Velho Continente, embora minha intenção ainda não fosse notória. Era filho de francesa, com nome de francês e não dominava o idioma.

     - Alô – disse eu.

     - Christophe, eu vou te ajudar lá na França.

     - Quem tá falando? – indaguei, surpreso e confuso.

     - Seu pai – o sujeito respondeu.

     E desligou.

     Obviamente, decidi fingir que tal ligação não havia acontecido, justamente para não precisar encarar os desdobramentos que ela engendraria. Afinal, ao mesmo tempo em que tinha certeza de que meu pai estava morto e enterrado, definitivamente aquela não era uma ligação do além. Começava, então, a me questionar se o motivo de eu ter sempre me sentido preterido como filho se devia ao fato de ser um bastardo. Naquele momento, pouco ou nada importavam nossas semelhanças fenotípicas.

     Fingir que aquilo não havia acontecido não resolveu muita coisa, principalmente quando o telefone tocou e, pela segunda vez, escutei a voz que acostumaria a ouvir nos anos seguintes. 

     - Você já deu bom-dia pro seu pai hoje?

     - Meu pai já morreu.

     - Você já deu bom-dia pro seu filho?

     Depois de tanto tempo, não sei mais dizer ao certo quem tomou a iniciativa de interromper essa ligação, mas permaneci intrigado com a pergunta a respeito do filho que, à época, ninguém sabia que minha namorada acabara de abortar.

     Eu tinha tanta convicção de que aquelas ligações eram tão reais quanto inusitadas, e não alucinação, que decidi pedir à namorada que ouvisse uma dessas conversas. Para minha surpresa, sem mais nem menos, o sujeito pediu que ela desligasse a extensão. Acabei me acostumando com essa bizarrice. Durante anos, era como se ele estivesse sempre um passo à minha frente, revestindo-se de uma espécie de onisciência que, em termos práticos, permitia que ele antecipasse minhas decisões.

     Quando me mudei para a França, decidido a estudar na Escola de Fotografia de Toulouse, cheguei a imaginar que ele não me encontraria mais. Ao chegar à cidade, aluguei um apartamento, sob a recomendação expressa da síndica, uma velha senhora falastrona, de que deveria verificar regularmente os ponteiros do aquecedor a gás. Como eu não entendia exatamente o que ela falava, preferi não dar a menor importância, fingi que nunca aconteceu e não tive qualquer surpresa desagradável com o equipamento enquanto morei lá.

     Um dia, o telefone toca. Inexplicavelmente, “meu pai” tinha conseguido o telefone de Toulouse. Em território francês, nossas conversas se tornaram cada vez mais longas e frequentes. O sujeito conhecia detalhes da vida da minha mãe e do meu pai, e sempre se referia a ele mencionado seu primeiro nome, Carmine. 

     Havia aspectos menos sombrios naquele bate-papo telefônico intercontinental. Ele parecia ser um profundo conhecedor de música erudita. Um dia, assistia a um programa na televisão com virtuoses russos, pianistas prodigiosos com menos de 10 anos de idade. O telefone tocou; era ele. À medida que conversamos, ele identificava as composições executadas e transmitidas na TV, que ouvia ao fundo. Lembro, também, que diversas vezes ele disse que eu deveria escutar Neil Young, outra de suas paixões.

    Acabamos estabelecendo uma camaradagem e uma proximidade que nunca tinha vivenciado com meu próprio pai. Numa ocasião, ele mencionou uma visita à casa em que morava minha família, em Brasília, descrevendo-a com minúcia. Foi quando me assustei com tudo aquilo verdadeiramente pela primeira vez.

     Acho que devido ao fato de envolver, até então, somente a mim naquela fantasia, preferia omiti-la da maioria e vivenciá-la introspectivamente, em vez de me preocupar com suas possíveis implicações no mundo real e na vida das outras pessoas. Não tinha mais como fingir que aquilo não acontecia...

     Ligar para minha mãe no intuito de mencionar aquelas dezenas de telefonemas omitidos ao longo de mais de dois anos foi o primeiro passo de uma ruptura relativa com esse ensimesmamento. Ela pareceu relativamente preocupada comigo quando relatei o ocorrido, e comecei a considerar a hipótese de solicitar a alteração do meu número. 

     Depois dessa mudança, orientei minha mãe a não compartilhar com ninguém o novo telefone, imaginando que “meu pai” não voltaria a ligar. Para minha surpresa, antes mesmo de comentar com a namorada sobre a decisão de abandonar aquele “modus vivendi” para retornar ao Brasil, o telefone toca:

     - Christophe, quando você volta pro Brasil?

     Era ele.

     De volta a Brasília, quando minha namorada já havia se tornado minha esposa e a gente tinha um filho recém-nascido, dentro do carro estacionado em uma quadra comercial da Asa Sul, concentrado na nossa conversa e sem prestar muita atenção, abri a porta exatamente no momento em que passava alguém. Nem chegou a encostar nele, mas eu disse mesmo assim:

     - Foi mal.

     Era ele.

     Um dia, tocou o telefone do apartamento em Águas Claras. Eu atendi:

     - Alô?

   - Christophe, um dia desses, você abriu a porta do seu carro na minha perna e disse “foi mal”.

     Eu sempre suspeitei quem era o sujeito, um cardiologista, colega do meu pai, mas nunca exigi que ele revelasse sua identidade nem que parasse de me ligar onde quer que eu estivesse, seja em Uberaba, Toulouse ou Brasília. Um dia, o telefone parou de tocar.

     Às vezes, é preferível fingir que certas coisas nunca existiram...


Brasília, novembro de 2011

Um comentário:

Anônimo disse...

atopÉ Marcelo Grossi,
Às vezes, é preferível fingir que certas coisas nunca existiram.
Concordo com você.
Mas só não esqueça dos amigos de P4.

Forte abraço na familia toda.

Fábio Mota