terça-feira, 12 de maio de 2015

Dia da Independência


Poucas coisas na vida são mais preciosas do que a amizade. Na adolescência, nunca dei muita importância aos apontamentos e conselhos do meu pai, acumulados em suas vivências e experiências pessoais. Pessoais e intransferíveis, pensava. O que se aplica a ele aplica-se a mim? - indagava. Mas sempre preferi coisas práticas a elocubrações. Gosto de perguntas sem resposta.

É claro que na maioria das vezes ele tinha razão. Mas a adolescência foi justamente um produto de questionamento e negação; talvez para a desconstituição psíquica da condição de criança. Aos 16 anos, achava que só meus amigos entendiam o que dizia e pensava.

Lembro que meu pai falava que amigos para toda vida eram aqueles que freqüentavam minha casa à época. Mas eu não concordava com ele. Sempre gostei de autonomia. Jornalista gosta de generalizar. Nunca tive vocação para “filho da pauta”.

Em meados de 1995, ainda não sabia que tinha Júpiter em Gêmeos, mas já tinha consciência da minha habilidade em convencer pela palavra. No Dia da Independência, convenci três dos meus amigos: Flávio Schettini, Marcelo Jorge e Ricardo Meirelles, a acamparmos no Salto do Corumbá, em Goiás. Fácil. Liguei para cada um deles e disse que os outros dois já tinham aceitado.

Nossa idéia de acampar lá era antiga, mas são muitas as contingências que adolescentes sem carro e sem dinheiro encontram para viajar sem ostensivo patrocínio materno ou paterno. Acabamos decidindo na quinta que viajaríamos no dia seguinte e passaríamos o final de semana. O dinheiro era realmente pouco.

Tudo ao máximo e agora! Não tinha consciência até então que era esse meu lema e o mote da minha existência. Certas coisas exigem alguma premeditação e algum planejamento. Até concordo, mas não consigo aplicar isto à vida prática sempre que necessário.

A gente tinha o fundamental: maconha. Bastante maconha. Basicamente, era tudo que precisávamos. Não lembro bem como chegamos à Estação Rodoferroviária, em Brasília, mas recordo-me que no trajeto de ônibus até o Salto do Corumbá contabilizamos tudo que cada um não tinha trazido para, no final das contas, saber o que tínhamos. Barraca? Não. Pratos? Também não. Colchonetes? Imagina...

Tínhamos duas panelas, alguns pacotes de macarrão instantâneo e latas de molho de tomate e de milho verde em conserva, uma lata de cappuccino, alguns pacotes de biscoito e o mais importante desses itens: um fogareiro que servia também de isqueiro. Além da erva e do papel para manufaturar cigarros.

Previdência não era exatamente um atributo comum entre nós. O único que já tinha ido ao Salto do Corumbá era o Flávio. Marcelo, que até então não tinha o apelido de Kendera, em alusão às irmãs e ao “quem dera fosse meu cunhado”, nunca tinha ido lá. Carioca e eu estávamos em Brasília há menos de dois anos. Flávio se lembrava do preço pago pela diária alguns Carnavais antes. Obviamente, só confirmamos o preço vigente na portaria de acesso àquele parque cheio de cachoeiras, quando constatamos que nossa estada seria ainda mais curta do que imaginávamos, e se restringiria ao resto da tarde de sexta e ao sábado.

Na verdade, creio que previdência não fosse atributo comum à maioria dos freqüentadores do lugar. Na tarde anterior à nossa chegada, no dia sete de setembro, um campista bêbado se afogara perto do lugar onde decidimos acampar, apesar da proibição explícita na placa à nossa frente. Independência ou morte! No caso dele, morte.

Acampar em local proibido não era muito problemático por não termos barraca, o que não configurava um acampamento de pessoas comuns. Distantes alguns metros do rio não muito largo nem profundo que corria depois do Salto do Corumbá, cachoeira que dava nome àquele ambiente biofísico, a noite foi fria e desagradável. O frio era tanto que fumamos a noite inteira, revezando algum cochilo com muita maconha.

Quando amanheceu, acordamos da noite mal dormida, preparamos um café da manhã e continuamos a fumar, até percebermos que outras pessoas já estavam acordadas também. Lembro de crianças caminhando em direção ao rio enquanto dávamos nossas baforadas, tomando cappuccino, enrolados em cobertores e com muita grama seca nas roupas e cabelos.

O maior problema de ordem prática foi, graças a Jah, remediado com facilidade. Conseguimos alojar nossos pertences em um guarda-volumes, resguardando-os da ação de qualquer um que ambicionasse apossar-se deles. O sábado foi uma sucessão típica de acontecimentos comuns a qualquer acampamento no cerrado do Planalto Central: trilhas entre gramíneas, arbustos e árvores de tronco retorcido, lado a lado com a vegetação característica da mata ciliar, diferentemente exuberantes; alguns saltos n’água e braçadas. Até o final daquela tarde, o acontecimento mais atípico foi presenciar um casal fazendo sexo numa trilha que dava acesso a uma das cachoeiras. Não sei quanto aos outros, mas foi a primeira vez que presenciei tal cena.

Cientes da necessidade de partirmos, fomos para a estrada esperar o ônibus de volta para Brasília sábado à tardinha. Nem imaginava onde era Pirenópolis, mas constatei que os ônibus que saíam de lá passavam por nós lotados, sem parar. Pessimista, o desespero já tomava conta de mim quando um sujeito se aproximou de nós, a pé. Fiquei receoso, já que fumávamos sentados na beira da estrada. Ele perguntou se estávamos indo embora, disse que haveria uma festa à noite e que deveríamos ficar. Explicamos não ter dinheiro. Foi quando o cara ofereceu quatro convites para permanecermos lá até o dia seguinte, e falou que teríamos que comprar apenas a pulseira plástica que tínhamos acabado de entregar na saída do parque. Aceitamos os convites, claro. Compramos as pulseiras e voltamos para o local onde era proibido acampar, em que havíamos passado a noite anterior.

A tal festa deve ter sido mesmo decepcionante. Lembro que as músicas não eram nem um pouco convidativas. Tanto é que optei por continuar fumando maconha. O responsável pelo som abaixava e aumentava o volume, “mixando” as músicas. Era triste. Foi suficiente para o Carioca cunhar dois apelidos para eles: DJ Goianinho e MC Corumbá. O que rendeu boas risadas por um bom tempo.

No dia seguinte, fomos abordados por dois homens de mais de 30 anos, que perguntaram se tínhamos maconha. O receio de que fossem policiais civis se dissipou logo, oferecemos dividir o resto da nossa erva e fizemos amizade com eles. Também eram de Brasília, moravam no Cruzeiro e ofereceram carona de volta. Aceitamos, lógico, e gastamos o dinheiro das passagens com cerveja para nós seis.

No final da tarde, depois de finda a maconha e as cervejas, acometeu-me a dúvida sobre o compromisso firmado com eles. Pessimista, como de costume, imaginei que pudessem nos deixar lá, sem carona nem mais dinheiro para as passagens de ônibus.

Não recordo o nome deles, mas a viagem de volta foi inesquecível, apertados no banco de trás. Ao chegar a Cocalzinho, a lua cheia pouco acima da estrada parecia cena de filme hollywoodiano. De repente, o motorista, deslumbrado ao volante, decide apagar os faróis do carro.

A vida revela surpresas a incautos e a previdentes. A amizade também.


1º de abril de 2005 (São Paulo - São Paulo)

terça-feira, 30 de julho de 2013

Você, de quem lembro ter uma bala na agulha

Mais um conto adolescente...


Minha cabeça chacoalha involuntariamente enquanto ouço o baixo pesado de Les Claypool em “The Family and the Fishing Net”. Mas isto já não me faz mais lembrar você. 

Só penso em lembrar dos seus olhos, nada mais. Nada. Seus olhos sempre exprimiram a grandiloqüência da convicção. Eram quase espirituais...

Nem todas as lembranças se apagam. Algumas são como tatuagens. Eternizadas. Geralmente as muito boas e as terrivelmente más. É notável o antagonismo entre elas, mas são as que ficam. Por si só, extremadas.

Lembro do seu extremismo. Era algo que sempre deixava você um passo a frente de todos. Um passo e um tombo a frente dos outros. Mas você era boa sob pressão, tinha tudo sob controle. Até demais...

Então não devo mais desejar? Não. Mas não posso esquecer. Você sempre foi a dona da situação. Você.

Sobrou em mim uma ferida feita na carne, um pensamento até involuntário, uma saudade atroz, uma mordaça no meu espírito. Alguma melodia triste de algo que não consegue se lembrar minha memória fatigada. Talvez uma quase determinação em acreditar que nem tudo é ao contrário.

Você sempre teve a faca e o queijo na mão...

01-99 (Brasília - Distrito Federal)





segunda-feira, 15 de julho de 2013

Hoboken


Em "Estilos de Antropologia", publicação da Editora da Unicamp, há um bom artigo da antropóloga Mariza Peirano sobre o desenvolvimento da disciplina no Brasil e na Índia. A partir de estudos comparativos, a professora da Universidade de Brasília discute como as visões de mundo de intelectuais brasileiros e indianos diante das realidades de seus respectivos estados nacionais se relacionam com sua produção intelectual e sua postura como cidadãos. Ou coisa parecida...

Longe de mim transformar esse espaço - quase sempre mais lúdico que lúcido - em chatice de antropólogo com pós-graduação; coisa que não sou. Mas não posso me furtar à certa reflexão nem à livre manifestação do pensamento.

Peirano diz que, no caso brasileiro, "o engajamento político do intelectual o ajuda na sua procura de identidade: estudando o indígena, o camponês, o negro, o caipira, as classes urbanas empobrecidas, o antropólogo está escolhendo como objeto de estudo os grupos 'despossuídos' ou 'oprimidos' da sociedade". Segundo ela, "temos os pés fincados no próprio país; é aqui que nossa identidade se desenvolve no dia-a-dia das definições políticas e cívicas, entre padrões de saber que importamos tanto quanto entre os modismos."

E refletir sobre o papel do intelectual brasileiro como um cidadão engajado politicamente me faz lembrar do potencial revolucionário da disseminação do conhecimento. Qualquer conhecimento. Inclusive, música.

Aliás, disseminar música boa é cidadania pura! E engajamento político. Afinal, não existe revolução sem trilha sonora. Ou, pelo menos, não deveria existir. 

Boa manobra léxico-semântica?

Vocês precisavam conhecer "Yo La Tengo", banda de Hoboken, em New Jersey, para dimensionar minhas verdades...


Mas, afinal, quem se importa com as verdades alheias?

Road to perdition

Há vinte anos, no primeiro ano do Ensino Médio, li em um texto curto, publicado em um livro didático de inglês, provavelmente da Editora Ática, que os esquimós, ou Inuit (“comedores de carne crua”), teriam em sua língua nativa dezenas de palavras para se referir à neve. Não havia Internet, e eu simplesmente aceitei aquela informação, sem questioná-la.

Ainda na adolescência, foi meu fascínio pela comunicação como expressão que me levou ao estudo sistemático da língua inglesa, a partir dos 16 anos. Descobri que, tal qual os Inuit, os britânicos tinham outras dezenas de palavras para se referir à chuva.

Na época da conclusão da minha graduação em Antropologia, em 2004, meu interesse pela Rússia me aproximou de algumas moscovitas que conheci pelo ICQ, comunicador instantâneo em desuso desde a segunda metade dos anos 2000. Meu inglês era ferramenta de comunicação. O russo que eu sabia era só charme. Assim como, para elas, meu português.

Foi nessa época que comecei a refletir sobre o vocábulo “saudade”, esse sentimento tido como inequívoca herança lusitana e que, em tese, seria privilégio exclusivo dos lusófonos. Com algumas linguistas russas, cheguei a discutir sobre eventuais similaridades entre “saudade” e o vocábulo russo “носталгия” (nostalgia).

Se sentir saudades é mesmo coisa de lusófono, o que dizer sobre as nuances do sentimento? Afinal, quem não conseguiria apontar particularidades em sentir saudade, por exemplo, quando se está apaixonado?

Apaixonar-se é um mecanismo de expressão e de trocas simbólicas, bem como a comunicação.

Quase sempre, o início é caótico, com uma profusão de sentimentos confusos e contraditórios - consistentes com aquela sensação de fascínio e medo experimentada quando se está fora da chamada zona de conforto.

Você é um caminho para a perdição...

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Adeus, Frida!

A partir de abril de 2000, você conheceu muitas pessoas e muitos lugares, Frida. Em Brasília, moramos na Asa Norte, no Guará, no Lago Norte, na Octogonal, em Sobradinho. Também em São Paulo e Passa Quatro, no Sul de Minas.

Casei em 2001 e, mais uma vez, em 2008. Os casamentos sucumbiram. Você resistiu, Frida.

Aliás, no inverno de 2000, foi graças a você que conheci a vizinha que um dia se tornaria minha segunda mulher. E, anos mais tarde, a maior decepção da minha vida. Até agora.

A vida e suas cicatrizes, Frida.

Foram duas hemilaminectomias, procedimento cirúrgico que visa à descompressão da medula espinhal em cães com hérnia de disco. A primeira delas em 2005. A segunda em 2008.

Em 2010, mastectomia radical e castração no primeiro semestre. No segundo, o diagnóstico do diabetes. Mais de dois anos sobrevivendo à doença, com sobressaltos.

Sua primeira crise hipoglicêmica, em 2011, aconteceu em Passa Quatro. Mesmo sem assistência veterinária, você sobreviveu. Consegui reverter a segunda, em Brasília, quando cheguei para dar seu almoço e você estava em estágio pré-convulsivo.

Ontem (22) foi a terceira hipo. Parcialmente surda e cega, às vésperas de completar 13 anos, sabia que suas chances dali pra frente eram inversamente proporcionais àquele sofrimento todo, minha filha.

Minha primeira filha...

Em 2010, quando a vizinha que se tornou minha mulher estava grávida, você "cuidou" dela. Lembro de você seguindo a moça pela casa o tempo todo, Fridinha. Quando ela fechava a porta do banheiro, você deitava a cabeça sobre suas patinhas posteriores e esperava.

Quando finalmente Valentina saiu da maternidade, no final de outubro de 2010, assim que entramos em casa, fui apresentá-la a você. Sabia que reconheceria o lugar dela e respeitaria a importância do mais novo membro da nossa "matilha".

Em dezembro, época da confirmação do diabetes, com minha pouca fé, desejei no meu íntimo que sua sobrevida fosse longa o suficiente para que Valentina se lembrasse de você, Frida.

Há duas semanas, lá em casa, ela viu que você tinha feito cocô na cozinha e disse:

- Papai, a Frida tá viajando...

Obrigado por tudo, Fridinha. Eu fiz o meu melhor por todo o tempo que pude.

Descanse em paz!