sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Chico Mendes: o Lula da floresta?

"No começo, pensei que estivesse lutando para salvar seringueiras, depois pensei que estava lutando para salvar a floresta amazônica. Agora, percebo que estou lutando pela humanidade" - Francisco Alves Mendes Filho

Chico Mendes

De todos os estados brasileiros que ainda não conheço, o Acre é dos que mais me fascinam. Não aquele fascínio pelo exótico que o Brasil, historicamente, sempre inspirou no imaginário francês, por exemplo, ante o desconhecido, o diferente, um "outro" radicalmente oposto a si. No meu caso, trata-se de uma admiração que surgiu e cresceu à medida que conheci mais e mais sobre o lugar, sua gente e suas histórias.

Meu interesse pelo Acre começou quando participei de uma série de documentários sobre saberes culturais imateriais da Região Norte, como roteirista, editor e diretor de edição, entre 2004 e 2006. Sobretudo, quando assisti ao depoimento de Osmarino Amâncio Rodrigues, seringueiro acreano, companheiro de Chico Mendes.

Aquelas duas horas de material bruto - sem edição, como captado pelo cinegrafista e pelo técnico de som - com o depoimento de Osmarino não eram apenas uma declaração de amor fraterno ao líder seringueiro. Ali, o discurso de uma testemunha ocular de conflitos vividos no Acre, desde 1973, a tecer a história de sua terra natal, de antes de Plácido de Castro e da quarta Revolução Acreana até à consolidação do Governo dos Povos da Floresta, que deixava claro o papel de Chico Mendes na História: o maior herói brasileiro do último quarto do século 20.

A Paixão de Chico Mendes

Francisco Alves Mendes Filho se tornou conhecido no exterior antes de ser reconhecido no Brasil. Há consenso até entre os ditos jornalistas respeitados de que a grande imprensa brasileira descobriu Chico Mendes e suas lutas às vésperas de seu assassinato. Ou, pior, só depois dele; como admitiu em entrevista o jornalista Zuenir Ventura.

A luta de Chico Mendes em defesa dos seringais e da permanência do seringueiros neles, para preservar a floresta amazônica, tornou-o mundialmente famoso a partir de 1985. Para além da falta de interesse midiático nacional anterior, os seringueiros do Acre eram um estorvo à fronteira de expansão agropastoril que, a partir da década de 1970, promoveu de forma mais ou menos sistemática a ocupação e a destruição da floresta amazônica naquele estado.

Com o apoio de outras lideranças, Chico organizou os "empates", quando famílias inteiras de seringueiros - homens e mulheres, velhos e crianças - impediam com seus próprios corpos que tratores e funcionários com armas de fogo tomassem posse dos seringais para destruí-los. Sua luta em defesa do meio ambiente e da permanência dos seringueiros na floresta conferiu a ele, em 1987, entre outros, o prêmio internacional "Global 500", oferecido pela Organização das Nações Unidas às pessoas que mais haviam se destacado, naquele ano, em defesa da preservação da natureza.

No dia 9 de dezembro de 1988, duas semanas antes de ser assassinado, em entrevista ao Jornal do Brasil, Chico Mendes explicou como funcionavam os empates: "É uma forma de luta que nós encontramos para impedir o desmatamento. É forma pacífica de resistência. (...) No empate, a comunidade se organiza, sob a liderança do sindicato, e, em mutirão, se dirige à área que será desmatada pelos pecuaristas. A gente se coloca diante dos peões e jagunços, com nossas famílias, mulheres, crianças e velhos, e pedimos para eles não desmatarem e se retirarem do local. Eles, como trabalhadores, estão também com o futuro ameaçado. E esse discurso, emocionado, sempre gera resultados. Até porque quem desmata é o peão simples, indefeso e inconsciente".

Chico Mendes era o cara!


Da fricção interétnica às Reservas Extrativistas: uma digressão histórica sobre o legado de Chico Mendes aos Povos da Floresta e ao Brasil

O conceito de fricção interétnica é (tido como) o primeiro conceito criado por um antropólogo brasileiro, Roberto Cardoso de Oliveira, para analisar o contato interétnico entre indígenas e não-índios no Brasil. O conceito é (quase) auto-explicativo. A fricção, inerente ao contato, envolvia o choque: visões de mundo divergentes e mutuamente excludentes que potencializavam o conflito.

Na história recente do Acre, havia disputas entre índios e seringueiros que remontavam aos ciclos da borracha. O primeiro tem origem na demanda por látex para a indústria automobilística estadunidense. No cenário nacional, esse fato imbrica-se à grande seca da década de 1870, que assola o Nordeste e, em especial, o Ceará, dando origem à transumância amazônica - quando cerca de 50 mil nordestinos rumam para a floresta amazônica à procura das chamadas "drogas do sertão"; e se tornam, posteriormente, a mão-de-obra mais abundante do primeiro ciclo da borracha. Durante a Segunda Guerra Mundial, outros milhares de brasileiros, sobretudo nordestinos, os chamados "soldados da borracha", ocupam novamente os seringais do Acre, dessa vez para prover a máquina de guerra aliada em luta contra o nazi-fascismo.

Chico Mendes nasceu no Seringal Cachoeira, em 15 de dezembro de 1944, no município de Xapuri, que conhecera o apogeu e a decadência do primeiro ciclo da borracha no Acre. Filho de seringueiro, também seringueiro. Aprendeu a respeitar o Curupira, ou Caboclinho da Mata, e sabia que, para garantir seu sustento na/da floresta, precisava respeitar todos os recursos do meio ambiente: fauna e flora. Assim, aprendeu a respeitar as seringueiras, fazendo o manejo necessário à recuperação da árvore, sua fonte de renda, de forma sustentável.

Acontece que, paralelamente, com a queda drástica nos preços da borracha, a partir da década de 1960, muitos donos de seringais desistiram do negócio e começaram a vender suas terras para criadores de gado e madeireiros. Foi nesse contexto que Chico Mendes se tornou, cada vez mais, um ator político de destaque nos cenários acreano, brasileiro e internacional.

A partir da década de 1970, no Acre, com sua habilidade nata de negociador e sua disposição genuína em ouvir o próximo, Chico Mendes conseguiu inverter, progressivamente, o eixo do conflito entre índios e seringueiros. À época, era preciso a união do povos da floresta contra inimigos em comum: os ruralistas que tinham a intenção de comprar os seringais e destruir todos os recursos da floresta para transformá-la em pastagens para bovinos.

Sua luta em defesa da floresta amazônica e sua idealização de um modelo de exploração de seus recursos, centrado no extrativismo sustentável da borracha, da castanha-do-pará e da madeira - sistematização de um modus faciendi secular característico dos seringueiros acreanos -, que permitisse a permanência e a sobrevivência do homem amazônico com dignidade e qualidade de vida, redundou nas transformações sociais que propiciaram o estabelecimento das Reservas Extrativistas e do chamado Governo dos Povos da Floresta.

Chico Mendes: o Lula da floresta?

Quem escreve que Chico Mendes foi um homem à frente do seu tempo é jornalista que não sabe o que escrever. Para mim, ele era um homem do seu tempo, no sentido drummondiano ("O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente"). Não é por que o aquecimento global, que provoca mudanças e tragédias climáticas mundo afora há décadas, se tornou, de repente, alvo do interesse midiático e, por conseguinte, da opinião pública, que Chico Mendes se torna, automaticamente, um visionário.

Assim, como Lula, Chico Mendes tem sua trajetória política marcada pela passagem, na primeira metade da década de 1980, da defesa de interesses do grupo de trabalhadores locais a que pertencia para a defesa de interesses mais abrangentes: do sindicato ao Partido dos Trabalhadores (PT). Um torneiro mecânico de Garanhuns, radicado em São Paulo, e um seringueiro de Xapuri unidos pela luta em defesa dos trabalhadores. A partir do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, Lula se torna deputado constituinte pelo PT, em 1986.

Em 1985, Chico Mendes, fundador e presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, cria o Conselho Nacional dos Seringueiros, selando seu destino. Com o primeiro encontro da nova entidade, realizado em Brasília, suas teses ambientalistas começam a repercutir na imprensa internacional. Obviamente, interesses contrários e forças (nada) ocultas começam a definir seu futuro.

Assassinado em 22 de dezembro de 1988, Chico Mendes, analfabeto até os vinte anos de idade, escreveu mais um capítulo da tragédia fundiária brasileira. Quanto vale a vida humana e quanto custa a terra?

Agenda 21, ECO 92, Protocolo de Kyoto e similares: imolaram o maior herói brasileiro do último quarto do século passado para que o Homem descobrisse que a Terra vive, em todos os sentidos.

"E quanto à pergunta que dá nome a esse artigo?" - você deve estar se perguntando. Delego ao leitor a responsabilidade de respondê-la.

3 comentários:

Blog do Maia disse...

um verdadeiro tratato. (ps-ce deve ter algo mal resolvido com algum jornalista neh)

Marcelo Grossi disse...

HAR HAR HAR HAR HAR!

Unknown disse...

salve Chico Mendes,aqui vc viveu e se perpetuou.