sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Camisa-de-força

Veneno e antídoto: sei que a essência é a mesma, como suicídio e nascimento, que têm a vida como essência. Sei que a morte depende da vida, do nascimento; mas não necessariamente a vida implica em suicídio.

O suicídio depende, sobretudo, da ação de matar-se, não apenas da vontade. Sei, e todos hão de concordar, que certas situações configuram-se dramaticamente insolucionáveis a ponto de se pensar em uma solução escapista. Mas sei também que a plasticidade e a adaptabilidade do ser humano diluem com tanta facilidade os problemas, principalmente quando percebidos como condicionados, sem exceção, às respectivas soluções, que não diferem-se da capacidade de diluição das inovações, perceptível no mundo moderno.

Diluir antes de digerir tem sido o estigma da modernidade. A "Idade da ciência" compromete-se com o carrasco e a vítima, eu aprendi.

Aprendi a perceber a essência de cada ato. Cada inovação surgindo como complemento. Como produto do meio, espelhava-se a humanidade em modelos. Alcançar os modelos e suas implicações exigia a aquisição de mais e mais produtos ofertados. O consumo institucionalizou-se o referencial da existência humana, determinante que possibilitava o usufruto do que de melhor era produzido para a sociedade.

Em pouco tempo, os homens estavam tão impregnados da necessidade do consumo exacerbado que conflitos surgiriam não só por interesses megalomaníacos de potências mundiais. Cadáveres renderiam pequenas homenagens às necessidades de influência, dominação e poder.

Na humanidade sempre esteve a essência da salvação. Meu Deus, a lucidez que o enclausuramento propicia deve ser dádiva do Seu poder. Só a misericórdia divina poderia iluminar minha razão desigualmente ofuscada pela demência a mim creditada por especialistas e pelo meio em que tenho vivido, ao longo dos últimos onze anos.

Quando fui trancado aqui, lembrava-me de pessoas entusiasmadas, de gente preocupada com o cotidiano. No sanatório, as preocupações são lunáticas. Pacatos ou violentos, mentes e corpos aprisionados têm vida própria. Algo que lhes é tão particular quanto o mais secreto dos pensamentos que preferimos não compartilhar com ninguém.

Sempre fui ambicioso. Antes de tantas sessões de torturas, que talvez pudessem ser chamadas, eufemicamente, choques elétricos, ou de medicamentos que impediam meu cérebro de agir como tal, ainda fora do manicômio, experimentei o prestígio social digno do professor que era.

Fui respeitado como pensador. Minha obra era comentada, discutida e refutada com a mesma ênfase, dada sua magnificência. A vastidão do meu conhecimento levou-me às vanguardas. Estive ligado a movimentos literários e partidos clandestinos, engajado e ativo, lutando.

E lutei. Defendi e ataquei, sobrepujando e sendo atacado por tantos com quem me engalfinhei, em lutas e debates que acabei descobrindo não serem meus. Foi quando fui atacado tanto pelo inimigos de sempre quanto pelos antigos companheiros.

Numa estratégia audaciosa, os partidários da situação, do status quo, e os partidos clandestinos definiram meu destino. O ato que trancou-me onde são trancafiados homens tidos como mazela da humanidade foi o primeiro entendimento de tal natureza entre eles.

Deus, como é notável que, respeitado por todas as minhas realizações, tenha sido reverenciado com o significativo empreendimento que me taxou de louco.

Veneno e antídoto. A formação que remediou minha ignorância e garantiu a dimensão da minha produção intelectual atirou-me nas trevas da insensatez a mim creditada. E a sociedade que racionalizei, parida das lacunas da legislação que a displicência premia, não se opôs em momento algum.

Sei que a partir do momento em que minha liberdade foi cerceada, meu valor subtraído e minha carne dilacerada, tornou-se plena e nítida a impressão de que havia me transformado em produto descartável. Meu lugar na sociedade, ou melhor, nas leis do mercado de consumo que regem a vida em sociedade, diluiu-se com a fúria dos que queriam minha morte.

A mim foram assegurados acompanhamento integral e assistência de qualidade, antídotos, paliativos para minha dita insanidade. A falta efetiva do antídoto poderia tornar-se meu veneno.

E a convivência com tantos loucos muitas vezes levou-me a duvidar de minha sanidade. Estive à beira da consciência absoluta em outras. Algumas vezes estive trancado em gaiolas, como um animal selvagem. As drogas que eram ministradas diluíam minha consciência e alteravam minha percepção, transformando-me em um quase ser humano, quase animal.

Mas meu espírito era forte. Minha carne era sensível; eu não.

O que me repugnou antes até de tornar-me um doutor foi a vida mesquinha vivida em sociedade. Como tornar-se-iam tão hipócritas aos meus olhos tantas atitudes eu observava...

Na verdade, acho que devem ter feito mesmo um bom serviço à manutenção do bem comum quando fui atirado no pedaço de chão que coube a mim, trancado e esquecido pela sociedade.

Veneno e antídoto. O sanatório não tornou-se minha cura, precisasse eu ou não do tratamento integral e da assistência de qualidade devidos. O manicômio tornou-se meu mundo. E minha mente continuou a mentar, acho.

Tenho saudades dos livros do Drummond. Tenho sim. Não posso obtê-los porque não tenho renda. Não recebo visitas; poucos se importam com gente tida como louca. Penso que não tenho mais parentes. Penso, mas sem emoção. Não tenho pena deles, nem mesmo de mim.

Sei que tive minha liberdade cerceada, minha individualidade reduzida à mediocridade. Quero que isso pouco me importe. Só desejo ter a mente e o espírito livres, como tenho tido. Não consumo nem sou consumido. O que me é dado é muito menos que o devido, mas prefiro não notar a dívida, a diferença entre prometido e concedido. Estou não apenas à margem, mas à considerável distância do mundo real.

Espírito e mente livres são meu refrigério entre as paredes que confinam minha carcaça. Sim, carcaça, não corpo. Corpo eu tive até minha matéria ser espezinhada pelos infortúnios que a açoitaram. A liberdade do espírito e a possibilidade da racionalização plena só atingi aqui. O manicômio foi meu mais significativo aprendizado.

Sei reconhecer o dia da minha morte. Não creio que saberia precisá-lo antes de hoje, acho. Estou até certo de que nunca soube mesmo quando ou como chegaria minha morte. Mas hoje acordei confiante de que era o dia. Nenhum sentimento de comiseração e auto-compaixão aproveitou-se da minha certeza, fazendo-me melancólico. O fato de ter sido libertado de toda e qualquer forma de opressão da mente e do espírito impedia-me de perceber tais sentimentos.

Gostaria de ter uma arma. Poderia eu mesmo dar cabo à minha existência hoje? Sei que é o dia do meu fim, sinto. Imagino-a metálica, reluzindo seu brilho prateado, inspirando e transparecendo poder. Assim poderia livrar minha carcaça da vida esmaecida entre paredes. Introduziria o cano na boca, sentindo o peso material da arma e o impacto psicológico causado por tal percepção.

Droga. Na verdade, não seria tão bom assim ter uma arma. Talvez a possibilidade do suicídio seja interessante para alguém com mente e espírito aprisionados pela vida que se tem na sociedade de consumo do mundo moderno; não para mim, que os tenho libertados.

Mesmo que esfacelem minha carne, o espírito e a mente livres garantem minha satisfação em viver. Sou livre. A morte não representa liberdade, não para mim. Só representa privação do direito de viver.

Veneno e antídoto. Estou livre, mesmo enclausurado. A humanidade acredita ter liberdade de escolha, direito e acesso ao mercado de consumo e às possibilidades de desfrutar de bens ofertados. Mas não sabe que consumir é consumir-se. É prender-se ao encadeamento do mundo, como uma engrenagem substituível e desmerecida.

Estou aqui, livre. O meu antídoto foi o veneno que me foi concedido: o manicômio. Minha liberdade só adquiri preso, liberto da avidez do homem e da convivência hipócrita da vida em sociedade.

Vocês deveriam conhecer a camisa-de-força que fere minha carne, mas não aprisiona minha mente e espírito. Vocês deveriam conhecer para poder perceber as prisões em que cada um está encarcerado por viver em sociedade. Todos vocês. Cada um na sua própria camisa-de-força.

08-06-99 (Brasília - Distrito Federal)

Um comentário:

Marcelo Grossi disse...

Esse conto é influência direta e inconteste do fascinante "O Andarilho das Estrelas", de Jack London, e das três vezes que cursei Introdução à Economia, meu karma na UnB.